Este é um texto do gênero diálogo, escrito por
Pa. Manoel da Nóbrega. Foi escrito com a intenção de ser um texto pedagógico,
ou seja, versava sobre a conversão dos gentios. E esses gentios eram os índios
nos primeiros anos da descoberta do Brasil. É um texto que tem uma linguagem
simples, mas que não deixa de ter requintes de um texto literário. Visto que
foi construído com uma naturalidade coloquial, mas com períodos bem
distribuídos no texto. E nota-se que essa oralidade é bem ajustada com o
intuito de fundir-se com a melhor sintaxe. Tudo isso para fugir da retórica
latina, já que os interlocutores eram outros, e não teria cabimento um texto
muito sofisticado no sentido de ser um texto para um público erudito das
cidades europeias.
O diálogo
da conversão dos gentios faz menção de algumas passagens do Velho e Novo Testamento. E um fragmento
que escolhemos é o que faz menção à família de Noé, personagem do livro dos Gêneses. Sobre este personagem, o diálogo
da conversão dos gentios, relata uma maldição que recai sobre o filho de Noé,
Cam, isto é, eles escolheram o que está dito no livro bíblico, de como Noé
plantou uma vinha, e do fruto da vide, produziu vinho, e visto ser a primeira
vez que provava desta bebida, se embriagou além da conta. Seu filho, Cam, vendo
seu pai bêbedo, zombou da situação e descobriu lhe a nudez, e com este gesto,
foi amaldiçoado por Noé.
Sendo
assim, a personagem do diálogo, Mateus
Nogueira, diz que por um caminho genealógico, os índios brasileiros
receberam a maldição de Cam, por isso vivem nus e miseráveis nos confins da
terra. Mas como a salvação em Jesus Cristo dever ser pregada a todos as
línguas, raças e tribos, eles acharam pertinente trazerem a salvação aos descendes de Cam, brasileiros.
Sendo assim, é um texto que segue a simplicidade de seus antecessores, e mesmo
que seja em um gênero diferente dos textos bíblicos, o conteúdo é o mesmo, isto
é: a bem-aventurança de todos os homens. Contudo, se nos textos bíblicos o
público era mais heterogêneo, já que eles foram escritos para os mais diversos
interlocutores; o diálogo sobre a conversão dos gentios tratava sobre o
trabalho jesuítico da conversão dos índios do Brasil.
Nesse
diálogo, os interlocutores são: Gonçalo
Àlvares, que exercia as funções de curador de índios, e Mateus Nogueira, ferreiro da Companhia
de Jesus. Sendo que o conteúdo do diálogo gravita em torno do assunto do título. E uma das questões mais interessante do texto
é quando, Gonçalo Àlvares, pergunta
para Mateus Nogueira se os índios tinham alma
como os europeus. Ele responde que é claro que eles têm, já que os índios têm
entendimento e vontade, sendo essas qualidades provenientes da alma.
Portanto, os índios têm almas, e se a alma vem
de Deus, necessário é que eles deixam seus antigos costumes que, segundo os
catequizadores, eram bárbaros, se convertem a Cristo para viverem uma nova vida
debaixo da graça. Sendo assim, eles não carregarão os espíritos das trevas
(religiosidade indígena), cujos espíritos deturpam a alma e leva o corpo a ser
queimado no fogo do inferno. Outrossim, para um jesuíta como Manuel da Nobrega,
nada do que fazia parte da religiosidade dos gentios dos brasis, era digno de
figurar no olimpo cristão dos deuses bem aventurados. Desse modo, segundo o
dogma imposto pelos jesuítas, os índios, para chegarem a Cristo, precisavam renunciar
a si mesmo, isto é, deixarem suas tradições, suas crenças, e adotarem como salvador,
Jesus Cristo.
Visto pela perspectiva dos catequizadores, os
índios eram malditos, sem eira nem beira nos confins do mundo, tendo como
habitat só florestas e rios. Sendo assim, tudo que fazia parte das suas
culturas, ou seja, a religiosidade dos índios e suas artes, por exemplo, não
passavam de manifestações demoníacas, cujos efeitos privavam os índios de se
salvarem. Portanto, não há como dizer que houve liberdade para os índios que
teve contado com os jesuítas, já que eles foram horrorizados, sofreram todo
tipo humilhação, perderam a liberdade de cultuarem seus deuses, e foram
desencorajados de manifestarem seus rituais sagrados. Portanto, a chegada da
“trupe” dos jesuítas em terras brasileiras, não trouxe a salvação aos índios,
nem foi chegado a eles o reino dos céus, mas, sim, um caminho intermediário,
entre o céu e a terra, o purgatório, de onde estão esperando a redenção e o
galardão da vida.
Sermão
da Sexagésima
Outro
texto do mesmo assunto, conversão dos gentios, mas de um momento distinto, é
este sermão da sexagésima do Padre António Vieira. Este sermão foi proferido na
Capela Real no ano de 1655. E seu conteúdo versa sobre a conversão dos índios
do Brasil em meados do séc. XVII. O texto que serviu de inspiração foi a parábola do semeador, reportado no
Evangelho de S. Mateus no capitulo 13. Pode-se dizer que o texto de António
Vieira usa de um recurso que a linguística denomina de intertextualidade, já que
ele tem elementos metafóricos idênticos aos do texto bíblico, além disso, faz
uma alusão direta ao que Jesus pregou na parábola
dos semeadores. Ou seja, o texto de S. Mateus discorre sobre um semeador
que sai a semear a boa semente, esta boa semente é a palavra de Deus, e quando
semeava, partes caíram ao pé do caminho,
então vieram as aves e comeram; outras caíram entre os pedregais, e por não ter terra o suficiente,
veio o sol e logo murchou-as; outras caíram entre os espinhos, e sufocadas não
o pôde crescer; e por último, parte das sementes caíram em terra boa, e deram
muito fruto. Explicando o significado dessa parábola, Jesus diz como é pregado
o evangelho em todo o mundo. Sendo assim, as pedras, os espinhos, o caminho e a
terra boa, são metáforas que simbolizam o caráter dos homens que ouvem o Evangelho
do Reino do Céu.
Desse
modo, segundo esta parábola, António Vieira construiu o “sermão da sexagésima”.
Usando os mesmos elementos metafóricos, e procurando dar ao seu texto a mesma
simplicidade do texto bíblico, porém, mesmo que no próprio corpo do sermão ele
elogia a simplicidade que deve ter um sermão, o texto foge da naturalidade do
texto bíblico. E talvez por isso mesmo ele condena a si próprio, se colocando
no mesmo patamar dos pregadores do seu tempo, dizendo que a causa principal de
eles não conseguirem arrebanhar tantas almas como os apóstolos, é que eles não
conseguem imporem a simplicidade dos textos canônicos. E isso se deve ao fato
de os sermões pregados por António Vieira e seus contemporâneos, estarem
impregnados do cultismo do período
em que eles pregavam.
Contudo, essa falta de simplicidade e naturalidade não é segundo uma
perspectiva que remonta à teoria aristotélica, visto que o sermão da sexagésima
não foge à regra proposta por Aristóteles de que um texto para ser belo tem que
ser simples. Desse modo, a simplicidade que falta ao sermão de Vieira era
àquela que os textos dos apóstolos continham, ou seja, não era uma questão literária,
gramatical, linguística e estilística, mas, sim, esta simplicidade natural emanava
do caráter do pregador. Portanto, mesmo que os sermões contemporâneos a Vieira
eram bem construídos segundo o que ditava os teóricos da época, faltavam-lhes
uma áurea mística dos primeiros apóstolos. Desse modo, o conteúdo sagrado dos
sermões, perdiam seu poder de conversão,
já que no meio do “trigo” semeado pelos
pregadores, sempre caia uma sementinha de “joio”. E esse joio nada mais era que
o cultismo que permeava os sermões. Contudo, em se tratando de um
texto literário, o sermão da sexagésima é superior ao texto bíblico sobre a
parábola do semeador, já que os elementos estilísticos e as metáforas são de
uma agudeza sublime. E assim, talvez em língua portuguesa, este seja a
principal obra do gênero. E como texto literário é capaz de levar, leitores e ouvintes, àquele estado de
espírito em que o poeta Manuel Bandeira chamou de alumbramento, tamanha é a
força das imagens metafóricas construídas por António Vieira.
Entretanto, como hipótese ao que foi colocado por Vieira, sobre o porquê
de seus sermões não arrebanharem tantos gentios como os apóstolos, está o fato
de que estes sermões deixaram de serem sacros, no sentido de que o são os
textos bíblicos, e tornaram-se textos do âmbito do profano. Desse modo, sua
força não está em converter os pecadores, mas sim em deleitar os pecadores.
Gregório
de Matos: Um lírico satírico
Sobre a
lírica, escolhemos um pequeno fragmento de um poema satírico de Gregório de
Matos que tem relação com o tema do sermão do Vieira e o diálogo do Nobrega, se
não pelo viés conversão dos gentios, pela
intertextualidade com o livro dos Gênesis.
Visto que o fragmento que escolhemos faz uma alusão direta à destruição das
cidades de Sodoma e Gomorra, cidades consideradas malditas por suas impiedades.
No poema satírico de Gregório, a cidade
maldita é a Bahia contemporânea ao poeta. Mas nesta sátira há uma inversão de
valores, já que no texto bíblico, as cidades de Sodoma e Gomorra eram cidades
xenófobas, visto que os estrangeiros não eram bem vindos. Já na Bahia do poema,
os autóctenes eram malditos e os estrangeiros eram benditos. Sendo assim, por
não ser bem acolhido pela cidade, no contexto do poema, o poeta lança esta
“maldição” sobre a cidade:
Tão
queimada, e destruída/ te vejo, torpe cidade,/ como Sodoma e Gomorra/ duas
cidades infames./ [...]/ Que eu espero entre Paulistas/ na divina Majestade,/
Que a ti São Marçal te queime,/ E São Pedro assim me guarde. (HANSEN,
2004, p.48)
Sendo
assim, o poema usa um recurso moralizante que era comum nos textos do Velho
Testamento, ou seja, em questão de impiedade cometida por um povo, nação ou
cidade, geralmente o castigo vinha através de peste, como aconteceu com as dez
pestes lançadas sobre o Egito e o fogo lançado sobre as cidades de Sodoma e
Gomorra, como castigo por suas maldades. Portanto, assim como acontecia na
antiguidade bíblica, acontecia, também, com a Bahia de Gregório de Matos: toda
impiedade será condenada com pestes.
Bibliografia
HANSEN, J A. A
sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. 2 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
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