Coração, cabeça e estômago.


Impressão de leitura
Se lê um livro como poesia da vida: ler por prazer. Para passar o tempo, também se lê. Mas há que se ler para escrever uma análise sobre o que se leu: ler para compor a nota da prova. Assim, como fazer tal análise, pelo prazer do texto, ou por obrigação? Por obrigação e pelo prazer do texto. Então esta análise será impressão de leitura, a partir das experiências literárias do leitor/ analista/ impressionista.
Há o livro “Coração, cabeça e estômago’’, no qual é narrado as peripécias do senhor Silvestre, nos caminhos do coração: as primeiras experiências amorosas: a descoberta das “sete mulheres”. O leitor não lembra o nome de todas, mesmo que acabou a leitura agora, pois que são muitas personagens. Só é possível relembrar dois casos amorosos, são eles: ‘a mulher que o mundo respeita’ : a D. Paula. Mulher fidalga, casada. Silvestre enamorou desta bela mulher, que além de bela era rica. Houve na vida da Paula questões amorosas extraconjugais. Pelo que o leitor se lembra, houve uns namoricos não convencionais, isto é, Paula deu suas escapadas poéticas: seu exercício de coqueteria nas festas dos elegantes. Como era fidalga, não perdeu a estima.
Houve “a mulher que o mundo despreza”


Essa foi uma deserdada: Marcolina.
Foi vendida pela mãe, comeu o pão que o diabo amassou. Casou-se com um homem que a comprou de sua mãe. O homem se chamava Barão, que, pela impressão de leitura, parecia ser um bom homem, apesar de que ‘sua vilania era uma forma de exprimir sua paixão e seu ciúmes’. Marcolina viajou com o Barão pela Europa: estiveram na Alemanha. Marcolina parecia feliz, isso comparado com a vilania vivida na infância. Em seus veraneios pela Europa, o Barão faleceu. Marcolina volta para Lisboa. Se casa com um antigo admirador, que parecia um bom homem; mas esse casamento foi o martírio dela. Nesse interim, antes de se casar, a moça ficou tísica. E viveu sua vida de tuberculosa. O casamento não melhorou as coisas, pois que, Augusto, o homem com que se casara, foi um carrasco para sua mulher. Tempos depois, Augusto abandonou Marcolina, que ficou na rua da amargura. Foi quando Silvestre a viu em situação lastimável. Este a recolhe, e a leva a uma vila “poesia bucólica”. Mas como Marcolina estava muito doente, o bucolismo não a curou de sua moléstia. Contemplando as paisagens poéticas da paragem, Marcolina dá seu último suspiro e morre nos braços da “arcádia”.


A segunda parte do livro é a denominada “Cabeça”: a fase filosófica, política e jornalística de Silvestre: esta não deixou nenhuma impressão no leitor, sendo assim, não foi possível escrever uma linha.


Estômago
Aqui, Silvestre renuncia ( mesmo que esse texto seja irônico, e tudo não passou de um jogo literário) as suas inquietações amorosas: questões do coração; questões : filosóficas, literárias e jornalísticas. E é quando decide se casar. A impressão que se tem é que, ainda que o assunto seja casamento, este não é um tema do coração, mas, ironicamente, casamento é uma questão de estômago.
Silvestre conhece Tomásia, moça solteira, tinha seus 26 anos quando Silvestre a conhecera. Tomásia era uma moça da província , especialista em poesia do paladar: filosofia do estômago. Ela vivia numa quinta bucólica, junto a seu pai e uns tios padres. O pai de Tomásia, sargento-mor, oferece a mão de sua filha ao Silvestre, este aceita. Começam o namoro, e os preparativos do casamento. Tomásia está radiante. Por sugestão do texto, sabe-se que Tomásia é uma moça padrão “bola de sebo”, a personagem do conto escrito por Mauppassant: uma beleza rechonchuda.Tomásia era uma cozinheira de mão cheia, talvez por este motivo , conquistou Silvestre: filósofo do estômago.
Como o narrador nos diz: Silvestre encontrou uma paragens pitorescas, que era como se fosse nos templos bíblicos: Tomásia vinha a ser , segundo a etimologia de Silvestre, da genealogia de Rute: mulher de Booz; Lia: mulher de Jaco; Raquel: mulher de Jacó; e Sara: senhora da Abraao. Segundo Silvestre, nos “contos’ bíblicos não se diz que era necessário que os maridos amassem suas esposas. Sendo assim, Silvestre não se preocupou em amar sua mulher; pois que, casamento, naquelas paragens ‘bíblicas’, não era questão de coração: amor. O que se exigia de um casal era a harmonia conjugal, principalmente se essa harmonia fosse a arte da culinária ( isso entre Silvestre e Tomasia). Tomasia, poeta da cozinha, “escreveu” poesias saborosas que deixou o estomago de Silvestre, feliz. Assim, este se tornou um ocioso comelão e beberrão de vinho. Se entregou a imobilidade: sua filosofia do estômago. Escreveu poesias do gênero de vida que levava. Morreu. Deixando a rechonchuda e bela Tomasia, viúva.
ps: Jaco amou Raquel: assim nos diz Camões em seu soneto.


Impressão estilística


Há no estilo literário de Silvestre um quê de Balzac: assim se inicia o livro, quase um verso na novela: “o meu noivado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi e que me viram”. Nos romances de Balzac, quando há descrição de damas da aristocracia, o escritor coloca diante do leitor a poesia que há nos estilos de cada dama: a poesia pode ser um penteado, um estilo de vestido; a maneira graciosa de uma dama cruzar as pernas; um olhar, o sotaque de alguma moça da Bretanha ou Normandia. Isso tudo, pode ser encontrado em seu livro “ Um estudo de mulher”. Assim, nosso autor português, em algumas passagens magníficas de seu livro, buscou as imagens balzaquianas e as introduziu na vida elegante das personagens em ‘coraçao, cabeça e estômago”. Procuremos um exemplo: “O crime de todas era a casquilhice, que o leitor pode , se quiser, traduzir para coquetterie”. Coquetterie é a filosofia mundana das damas estudadas pelo autor da “Comedia Humana”. A busca de um estilo poético de Silvestre que é como se fosse Balzac ( quando um autor de prosa é poético). Vejam este trecho no qual há flerte entre Silvestre personagem e umas damas do mundo elegante:
Languiram em doce ternura meus olhos, fitos na mais amável das quatro. Algumas vezes nossas vistas se encontraram, disseram profundos mistérios da alma. Fugi outras vezes da sala e fui a uma varanda, donde se ouvia o bramido do oceano, casar as melodias do meu amor com as dissonâncias formidolosas do estrugir das ondas”.
Isso é uma poesia romântica, em prosa. E isso é o que é a arte em Camilo. Se dissemos que alguma coisa disso lembra Balzac, é por ser este o autor que fazia isso com maestria, e Camilo o imitou, mas criando outras imagens poéticas magníficas, como neste livro “Coração, cabeça e estômago”. Não é questão de gênero: poesia ou romance: romance realista ou romântico. É da ordem do estilo: quando um romance contem muito de poesia em algumas passagens. É o instante, a nuance de que nos fala Roland Barthes.
O romance é como se fosse uma viagem de turismo, na qual o turista leva a tira-colo sua polaroid. Em um momento especial da viagem , fotografa “ um azul perdão nos olhos de um andarilho”. Essa fotografia seria, comparando, a poesia da viagem. No romance a poesia é aquele instante em que o leitor ‘ fotografa’ a beleza que há em determinado trecho do texto, como este: “Um verdadeiro amor é a segunda inocência” ( Camilo, p. 58). Isso lembra um verso de Fernando Pessoa: “Amar é a eterna inocência”. Pronto, confirmado! Há poesia em “ Coração, cabeça e estômago”.




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